Metafísica






Meu céu, menos azul do que antes

pela falta que tu fazes

pela verdade de tua existência que me deixou.

A noite que me banha, menos alegre

porque não vejo a brilhar

a estrela que me dá alento, me acaricia,

e isto anuncia um fim próximo: o meu...

E esses campos todos que me cercam

agora menos coloridos,

a própria vida se mostra minguada, incerta,

e nem meus olhos de quase-poeta

podem restituir-lhes a sua cor, a sua vida.

Percebo a minha própria pequenez,

o quanto sou ínfimo, o quanto acreditei:

os verões que passamos juntos não são eternos...

As coisas, mesmo elas, perderam o sentido,

já não há porque chover,

chover remonta a lágrimas,

essas que me falham.

Por que então a aflição?

Não sabia eu que enquanto uns riem

outros tantos amargam sua dor?

Essa sim, inevitável...



Em 02/12/2004
22:22 pm

As aves negras






O homem está esquecido.
Ao seu redor apenas as aves negras,
os corvos obscuros girando, girando,
ameaçadores, mortais.

Guarnecidos de garras afiadas e bicos pontiagudos
fazem vôos rasantes,
tocam de leve a face estupefata do homem
que tanto errou.

As aves famintas, ruidosas, inquietas,
gemem de fome, exigem o que é seu:
a alma do homem só, vendido com seus erros,
vontade perdida do amanhã que nunca virá.

Por isso as aves.
Elas não seriam possíveis
sem que houvesse escuridão
e erros vários.

O homem, de um aposento a outro
tenta fugir, esconder-se.
Mas está fraco,
seu passo vacilante denuncia sua presença
para os pássaros negros que ameaçam esmiuçar-lhe o coração.

Num canto o homem se encolhe
e as aves cercam-no, cerceam-no.
O homem solitário implora por um instante a mais,
pede clemência, não quis errar tanto.

Seus olhos esbugalhados de pavor começam então
a chorar, chorar, eis a salvação:
as lágrimas que nunca vieram...

O home, esquecido a um canto adormece.
As aves, já satisfeitas, se vão.
Ao menos por hoje está salvo
nos braços do novo dia que o acolhe.


25/07/2004
00h38minA.M.

Divagação




A manhã começa cinzenta, os pingos de chuva trazendo uma sensação ainda mais plangente de saudade. Pela janela entreaberta o tempo fechado me convida para fitar tua ausência, cada vez mais significativa. Começo a pensar no que você está fazendo neste momento em que quero apenas estar contigo...
Poucos dias atrás, as manhãs tinham um tom diferente. Ao acordar, eu não via o cinza que agora contemplo; por mais frio que estivesse, meu dia começava incendiado pela perspectiva do nosso encontro iminente. Você estava onde sempre esteve, a esperar minha chegada, também como eu, sôfrega pelos minutos que teimavam em nos separar. Aqueles dias eram totalmente nossos, neles construíamos nosso amor, projetávamos nossos ideais ao futuro logo à frente; como era bom estar com minha amada...
Mas agora o que posso fazer? Ficar sozinho, os olhos fitos na expectativa do reencontro, na angustiante espera do retorno ao lar e à minha mais que querida. Resta-me como a um ilhéu resignar-me pelo momento da ajuda, da salvação vinda de algum navio fortuito. Até lá eu me perco nas mais profundas águas da saudade. Nelas meu corpo flutua sôfrego do afago querido, ansioso pelo teu toque mágico, única esperança neste mar de desesperanças. Teu amor serve-me como salva-vidas, instrumento eficaz em manter a vida, o ar e a plenitude de tua presença...

A dor de partir




Sozinho, as lágrimas afloram. São lágrimas tristes, demasiadamente tristes. Mas também lágrimas covardes. Quem dera se eu as pudesse expor à minha amada, que fica...
Para trás ficam os dias cheios de sua presença, Dostet. Rapidamente o carro se afasta da cidade querida e da minha eterna amada. Eu parto para um lugar hostil, onde não terei os seus beijos de bom-dia, nem seus abraços apaixonados, nem seus olhos queridos. Agora, eu parto.
Minhas lágrimas teimosas me banham a face. O coração se aperta no peito e parece que jamais. Tantas palavras poderiam ser ditas. Ou, talvez não. Apertei a cara contra o vidro da janela do carro para mais uma vez te ver. Então acenávamos um ao outro, um dia talvez. E em algum ponto eu não te vejo mais; e aí começa o meu suplício, pois a imagem que levo de você, Dostet, é para noites solitárias, e não para partidas. Por isso as lágrimas. Por isso essa dor que levo no peito.
A paisagem passa ligeiro pela janela do carro. Uma imagem feia e borrada. A distância entre nós fica maior, a despeito do teu rosto tão dentro de mim. E o que posso fazer? Chorar...
Mas não te culpo. Não há culpados. Ou será que há? Ou será que sou eu? Sim, talvez. Réu confesso, eu me tornei, e por isso preso fui ao teu coração. Minhas lembranças não são mais minhas, mas nossas; e agora sou parte tua, sou teu, Dostet. Então sou culpado sim! Se hoje sofremos esta separação foi por ter ousado invadir sua vida. Mas de invasor, passei a ser amante e amado, e o teu amor foi tudo para o meu nada! E agora sou agora o sou. E por isso eu te amo...



18/01/2009
09:37 am
quando parti e deixei quem sempre amei...

Casa




Tudo parece tão nítido... É como se a casa ainda estivesse intacta, os mesmos objetos, as mesmas sombras, um mesmo eu de antes. As vozes que se ouvem são conhecidas, como também a música, tantas vezes tocada no pequeno aparelho toca-CD.

Tudo está lá, do mesmo jeito: manhãs conhecidas invadiam as janelas, um cheiro de café tomava o ambiente, o novo dia era recebido com uma vontade explícita de felicidade. Os livros, sempre espalhados pelos cantos, jaziam ao chão. Era neles que tinha o costume de perder-se nas tardes floreadas por uma sensação boa, de estar bem, de estar completo.

Imaginava-se como antes, sentado à porta da casa saudosa, as folhas das castanholas sendo levadas pela brisa morna de um passado que não volta mais. Tudo era saudade; grandes e fúteis debates sobre a vida e seus paradigmas; o silêncio compartilhado entre os companheiros de vinho, café e violão; longas e repetitivas sessões de treinamento, ainda que sem objetivo algum, mas de algum modo o Taekwondo os mantinha unidos, como uma família; e o que dizer da canção tantas vezes ensaiada para a primeira gravação?...

A casa tinha também sua tristeza, seu instante de nada, marcado pelo exato momento de uma saudade a mais, nas noites lavadas por chuvas de inverno. Foi numa noite assim, solitária, fria, que se curtiu o mais triste adeus; não o adeus de uma longa viagem que um dia acaba, mas o fim da história do amor que um dia dele quis ser, como tantos outros, levados por um quê de incerteza, lembrados e evocados pelos tempos imemoráveis...

Ali também foi palco de não poucas epifanias. Talvez se se apurar os sentidos ainda é possível sentir o cheiro do perfume da mulher que encheu a casa e sua vida também. Talvez seja ainda possível perceber o rastro de luz deixado por sua presença, ou quem sabe a um canto acompanhar cada movimento seu, cada gesto, cada palavra dita. Acontece que esta presença se impregnou não só na lembrança da velha casa, mas em si próprio, em sua carne e saudade. Parecia impossível a redenção das lembranças, mortas e ressurretas, como os fantasmas de seu passado antigo...

O pequeno quarto era o seu laboratório de idéias, literárias ou não, que enchiam folhas e folhas de papel, se acumulando pelos espaços vazios da casa. Cada noite era assim: o homem só e o papel branco, um defronte o outro, dois gladiadores exaustos com armas em punho, prontos para a mais sangrenta das batalhas, a luta pela conquista das lembranças...

Como se sentia fraco com todo esse instante de perdição... Tudo se perdera, não há mais casa, nem tarde alguma onde sentir o hálito da brisa tocando seu rosto. Cada rosto familiar foi se perdendo, as coisas são assim mesmo, se perdem por aí, menos a saudade que o coração insiste em manter viva... As manhãs nunca serão como aquelas que acolhiam a casa e os que nela viviam: o cheiro adocicado do café tomando o ar, a poesia que começava a se insurgir em mais uma tarde serena, as leituras dos livros, seus companheiros de solidão e angústia, a plena certeza de que aquele seria um dia para grandes coisas...

Diante de tanta lembrança boa, um suspiro o faz pensar que as coisas são assim mesmo: o passado está aí para consumir tudo que faz relembrar o tempo que não volta mais, povoado por boas e ternas vivências.

Coisa de guri



Bem verdade que as tardes sob a sombra das mangueiras trazem uma saudade danada. Como era bom quando brincávamos de jogar gude, pião, de fazer casinhas de areia molhada, de jogar o “pau na lata”. Era boa a vida naquele tempo, os dias corriam tranquilos, como demorava a chegada do Natal e dos primeiros dias frios do ano!... Era bom acordar de manhã e, ainda sob o cobertor, ver a manhã ficando mais clara pela grande janela. Daquele jeito eu podia sentir o dia nublado entrar na casa sonolenta. Logo me levantaria e me postaria à minha janela, vendo o riso preguiçoso da manhã me invadir...

É impossível não rir me lembrando dos banhos dos banhos no Cano, proibidos pelo Pai. Ele sempre dava um jeito de passar por lá e ver se seus filhos estavam se esbaldando nas águas barrentas. Quando o avistávamos, eu e o Beto, meu irmão, tratávamos de prender ao máximo a respiração e mergulhávamos para não sermos descobertos.
Quando o Pai constatava – pessoalmente! - que não estávamos no Cano, então ia-se e depois de uma boas risadas, eu e o Beto nos deleitávamos na tarde molhada que ia-se desfiando...

Bons tempos aqueles... Na escola era divertido ficar olhando os alunos passarem pra todos os lados, o burburinho falando de tudo: desde bobagens até os primeiros amores que nasciam e o mundo sob a ótica infantil que até então tínhamos; os companheiros de sala e adolescência, seus apelidos inesquecíveis, nossas inúmeras aventuras todas as tardes, quando saíamos pela cidade em nossas bikes poderosas desbravando o mundo que era nossa Floriano. E eu ainda fazia minhas incursões secretas e noitívagas : me postava no canto mais escuro da rua, em frente à casa da garota que roubara meu tempo e coração. Tudo valia para vê-la fora do ambiente da escola: dava um jeito de emprestar alguma coisa a ela para depois ter motivo de ir até sua casa. Quando não havia motivos assim, ficava clandestinamente à espreita de uma rápida aparição sua pela janela.
Eu faria isso por muitas noites, até que um dia eu parti. Então meu coração foi partido porque deixava para trás a menina linda, de olhos castanhos e cabelos ruivos que amei sem que ela soubesse desse amor.

Muitos anos depois rememoro tudo isso, os olhos marejados, o coração apertado pelo fim que levou aquele guri, que com tantas privações procurou um jeito de ser feliz. É claro que tudo isso lhe custou um caro preço: anos depois ele viria a se tornar um colecionador de muitas perdas e poucos ganhos. Seu rosto perderia as feições pueris, daria lugar ao rosto marcado pelo cansaço e desilusão. O espelho amarelo do banheiro atestava isso: os olhos perderam o brilho, a vivacidade; agora só um olhar cinzento, de lamento, envolto de escuras olheiras e rugas teimosas. Esses olhos se acostumaram a uma busca irrefreável pelo menino que se foi, por suas traquinagens e facécias. Tentam inutilmente reviver o tempo antigo do passado, trazendo tudo também, a escola, os amigos, o Cano, o amor. É claro que somente a lembrança é suplantanda desse baú repleto de coisas improváveis. E por isso seu coração chora a dor do que um dia foi e não é mais...

Lixo? gente



Eles estão por toda parte. Nas esquinas, em baixo de viadutos, sob as marquises, nenhum lugar é impossível encontrá-los. Da noite para o dia se proliferam como ratos, o resultado de seus livres e descompromissados amores se vê todo dia nos sinais das ruas. E é em cada semáforo, que, com habilidades circenses, eles conquistam olhares curiosos, têm seu momento de fama, de notoriedade. Sua pequena apresentação às vezes é recompensada por uma mão mais caridosa que lhe estende uma moeda; junta a outras garantirá uma quase-refeição.

Porém, na maior parte do dia eles são anônimos. Ninguém sabe como se chamam, não têm casa, seu destino permanece incerto, como a próxima refeição. Perambulam por toda a cidade, vez ou outra seus olhares se cruzam com os meus e com os seus também. Neles eu posso enxergar um silencioso pedido de socorro e ajuda; também o medo da incerteza da vida que os aflige; vejo ainda um misto de desesperança e rancor; desesperança pela impossibilidade de mudar sua nefasta condição; rancor por alguém ter-lhes roubado o direito de sonhar, de ter esperança, de ser gente...

É triste ver como seus corpos esquálidos se acostumaram com o quase-nada. Com extrema habilidade, eles vasculham as latas de lixo, buscam encontrar as sobras daquilo que eu e você nos fartamos, e é com esse “resto” que eles garantem sua sobrevivência. Há muito deixaram de ter vergonha de estarem socados no meio da sujeira doméstica produzida por mim e por você. O único aroma que seus olfatos estão acostumados é o de comida putrefata; de alguma forma, em meio aos vermes que lhes corroem as entranhas, seus organismos conseguiram se adaptar às agressões causadas pela deglutição de alimentos azedos e podres.

Quando chega a noite, se amontoam nas calçadas em busca do melhor lugar para dormir. Um papelão velho e sujo serve-lhe de colchão, um trapo imundo, de cobertor. Adormecerão como meninos, mirando o imenso tapete estrelado, vastidão de pontos luminosos, que traz aos seus corações endurecidos pela privação um segundo de embevecimento. Naquele instante mágico, diferente da opacidade habitual, seus olhos brilham com o espetáculo da noite vasta, que sorri para aqueles rostos quase encobertos pelo lençol sujo e fedorento. Nesse momento eles se permitem pensar: pensar sua situação, seus medos, suas expectativa no novo dia que logo nascerá. Ousam questionar para a vida o porquê de estarem assim, esquecidos, abandonados, tratados como sub-gente; chegam a causar asco a pessoas esnobes como eu e você que se enoja do odor que exala de seus corpos imundos, sem banho. Eles têm um segundo de lucidez em meio ao torpor trazido pela droga barata, furtada. Mas, confusos, logo desistirão de entender as inquietações de sua alma. Preferirão continuar assim como estão, sargeja da sociedade, sendo diariamente vomitados pela minha e sua ânsia de mais acúmulo, mais prazer, mais conforto, mais, mais, mais...
Agora, te desafio a olhá-los nos olhos todas as vezes que encontrá-los por aí. Se você tiver coragem, permita-se fitá-los por alguns instantes, e verás: como se parecem com você, não é? Pobres criaturas relegadas à própria sorte, produto de nossas ambições funestas, nos acostumamos a vê-los nas ruas, vagando sem destino. Quantas vezes eles bateram no vidro de nossos carros pedindo uma moeda, e o que fazemos? Ignoramos suas presenças, olhamos para o lado oposto, fingimos que não é conosco, damos a desculpa de que pode ser ladrão, assim é mais fácil... a eles resta apenas vergar a cabeça num sinal de aquiescência, há muito desistiram de se impor, se esqueceram de como é ser gente...
Acontece que ignorá-los não os fará desaparecer; nem tampouco adiantará fingir que não existem. Eles estão por aí sim!, sem nome, sem identidade, sem esperança, sem a minha e a sua atenção. E enquanto não resolvermos dar as mãos e tornarmo-nos uma sociedade de iguais, eles continuarão dormindo nas calçadas por onde pisamos, tendo somente nas noites amigas o motivo para sorrirem e se sentirem um pouco menos lixo humano.

Em 26 de setembro de 2008
23:11p.m.

Sobre Marley's e um outro eu




Acabei de assistir ao ótimo filme "Marley e eu", longa baseado no livro homônimo, de John Grogan. É um filme lindo, lindo mesmo, que conta como pessoas se afeiçoam ao seu animal de estimação, de uma forma tal que até mais parece um integrante da família e não um animal apenas. Marley conquistou o coração dos seus donos, a despeito das trapalhadas que fazia, como comer paredes, roer telefones, sair correndo com roupas na boca, e tudo o que desse para pôr em confusão! Rs.

E, pensando nessa intensa afeição, é como se eu voltasse ao meu passado menino, quando um serzinho peludo entrou na minha vida, num fim de tarde tão remoto quanto minhas lembranças. Foi assim que Liane entrou em nossa vida.

Cadelinha pequenez, pelo negro com manchas avermelhadas,olhos vivos e brilhante, ela era tudo para mim naqueles dias. Gostava de chegar da escola, perto da hora do almoço e ouvir os seus latidos frenéticos, ou perseguindo as galinhas do nosso imenso quintal (para desespero da mãe!), ora para me receber depois de uma manhã ausente. Eu corria para ela com uma alegria imensa, a tomava em meus braços e a levava no colo até a casa. Então me sentava à mesa para comer, enquanto minha cachorrinha acompanhava cada garfada que eu dava, às vezes fazendo de tudo para chamar minha atenção e ganhar um osso...
Liane estava presente em todas as nossas brincadeiras. Seja correndo atrás dos meninos que brincavam nas tardes gurias, seja simplesmente lambendo-nos com sua línguona úmida, ela era nossa mais nova companheira de facécias. Adorava atrapalhar nossos babas correndo atrás da bola para mordê-la. Aliás, era o que mais sabia fazer: morder, de brincadeira e de verdade também. Rs

Um dia as chuvas vieram, então, tive a brilhante idéia de construir para Liane uma casinha de cachorro. Toda de tijolos e coberta com pequenas telhas, aquela realização foi um dos grandes orgulhos de minha infância. Mas não para Liane. Porque ela nunca queria ficar na sua nova morada, a sós, preferindo dormir ao pé da cama, onde, acho, podia contemplar a sonolenta quietude de seus donos. Isso até os primeiros raios de sol nascerem, quando saía em disparada à procura das galinhas assustadas.

Ela também deixou de ser apenas nosso animalzinho. Liane já era parte da nossa família, algo que era indiscutivelmente aceito por todos. Então veio a desgraça. Sua intensa alegria foi acompanhada por uma maresia que a fazia ficar quieta e deitada o dia todo. Não respondia aos nossos chamados, apenas balançava o rabo peludo; não queria brincar, e até comer era uma tarefa difícil. Rápido emagreceu, o pelo perdeu o viço, o brilho, passando para um opaco sem luz; seus olhinhos perdidos e tristes pareciam nos dizer que logo nos separaríamos. Nossa cachorrinha estava muito doente.
Nós a fitávamos, tristes por vê-la naquele estado, até que numa certa manhã entre cochichos de "não tem mais jeito", a levaram, dizendo que não poderia estar no meio das pessoas, confirmando nosso pressentimento de que algo de ruim estava prestes a acontecer.

Liane nunca mais voltou, restando apenas a saudade daquela cadelinha, e com sua partida repentina, um pouco de minha infância se foi também...

Piano e magia




Poucas coisas marcam a vida de uma forma especial. O primeiro passo. O primeiro dia na escola. O primeiro amor. A primeira lágrima de dor. O primeiro instante de vazio...
Mas nem sempre as primeiras coisas são as que marcam, mas alguns momentos que nos marcam assim, primeiro. Como aquela noite. Como aquele instante. Como o piano que encheu de esperança a sala ampla.
Ele estava a um canto, solitário, emudecido praticamente a semana toda. Mas que gozado, um piano de cauda de verdade, o “meu” piano esquecido. Isso até que minhas mãos pouco hábeis começassem a martelar-lhe as teclas brancas e pretas e o tirasse de sua letargia musical. O que se repetia quase todas as manhãs: o quase-escritor, pianista? Pianista barato. Tão barato quanto os vinhos que financiam a minha embriaguês.
Mas naquela noite não. Não haveria um concerto com platéia, apenas o pianista barato, seu repertório encolhido, sua pouca habilidade musical. E ela. Aquela noite iria tocar a canção mais especial, espécie de prece musical do amor que então vivia. E tudo estava preparado: a sala ampla, só não completamente vazia pela presença do gigante negro adormecido a um canto; o grande espelho onde eu podia ver o reflexo do beijo mais que esperado; as barras de alongamento, usadas na flexibilidade de futuras bailarinas.
À sombra da luz vacilante os dedos martelavam as teclas, buscando construir a melodia ensaiada à exaustão. Sentada ao meu lado, pude ouvir-lhe um suspiro de surpresa por tão excêntrico presente. Seu sorriso abriu-se lentamente, comovido pelas notas suaves que iam enchendo a sala, seu coração e minhas esperanças. Seria uma intenção de lágrima que estaria prestes a brotar de seus olhos? E de repente tudo ficou mágico, como se tudo ao redor se tornasse parte daquela canção que minhas mãos extraíam do teclado alvinegro. Simplesmente perfeito. O perfume que se volatizava de seu corpo dava aroma a cada acorde entoado. O brilho dos seus olhos, expressando talvez uma possibilidade; e era como se o cenário fosse tomado por aquela canção, por aquela circunstância, por aquele instante de vaguidão que enchia meu peito. O cenário perfeito. Um beijo talvez?...
Não precisei chegar ao fim da música. Minhas mãos foram impedidas de continuar a tocar pelas dela. Eu sabia ter chegado o momento. Então. Enfim...
A magia daquele instante que nunca iria se repetir foi dissipada pela entrada inesperada de um curioso com a música que lhe chamara a atenção. O resultado: um casal desconcertado diante da interrupção repentina do intruso. Tudo o que pude fazer foi ciscar uma nota ali, um acorde aqui, balbuciar alguns grunhidos, dando a entender ao nosso "amigo" inesperado que ele não era bem vindo.

A noite terminou sem que a epifania esperada acontecesse. E eu nunca mais toquei naquele piano.
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