Memórias do meu cárcere




Pela janela vislumbro o céu arroxeado que me saúda. Um novo dia começa. O corpo nega-se a despertar do torpor noturno, toda a musculatura dói como se tivesse sido açoitada; também meus pensamentos estão doloridos por uma saudade insistente, custa-me esta ausência de rostos e lembranças.
Permaneço deitado, é domingo, não há nada a fazer, a não ser digerir o gosto insalubre da solidão que é inevitável. Daqui a pouco burburinhos serão substituídos pelas banais saudações, por piadas contadas ainda na noite anterior e que ainda incitam a risos e escarninhos. Mas eu não estava mais ali: meu universo era outro; outros eram meus pensamentos.
A leve brisa que desliza pela janela traz um pouco de alívio do calor infernal que nos maltrata, os raios do sol mudam de tom, do arroxeado, depois avermelhado, até atingir uma tonalidade amarelada. Os minutos vão escorregando lentamente, o dia vai tomando forma, cor, densidade, textura. Ao contrário, menos palpável é esta realidade que tenho vivido ultimamente. Uma realidade crua, fria e disforme.
Tento levantar, o corpo impede este movimento, então desisto, não há nada mesmo que fazer; talvez um banho de mar mais tarde, depois que minha disposição mudar...
Ao longe os muros imponentes, intransponíveis dão a sua mensagem: por trás deles a liberdade, sem regras, horários, nem ordens. Uma liberdade muitas vezes negada, impedida, será que a sabemos valorizar?
Os primeiros vultos revolvem-se em seus beliches, num canto mais distante conversas abafadas brotando, que horas são, você pode emprestar-me um barbeador?
Começo a me lembrar dos tempos de guri, cada novo dia era a chance de realizar grandes coisas, um mundo era construído através dos brinquedos e brincadeiras, que se davam sob a sombra das mangueiras. Bons tempos aqueles...
Mas os tempos são outros. Tempos de uma liberdade limitada pelo relógio, por cada dia, por um dia num futuro incerto, quando a liberdade se tornará de novo completa e sublime. Sem muros, sem manhãs desbotadas, sem a ausência de cada passado. Me levanto, enfim; mas permaneço sentado no colchão que tomou a forma de canoa, consulto o relógio: 05:20h. A vida se limitou a dia-após-dia, uma espera angustiante, uma demora agonizante até que venha, afinal, a redenção, a glória, a conquista. Mas até lá é assim; terei que conviver com cada sombra, cada vulto se revolvendo em seu leito, cada manhã que vai se tecendo pelos céus da baía.
Olho mais uma vez os muros imponentes, será bom sair um pouco, arejar a mente, quem sabe um banho de mar?, e sentir as ondas quebrarem ingênuas nos meus pés, como a lembrar que a vida é feita de um vai-e-vem interminável, até que nasça a próxima manhã.
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