Casa




Tudo parece tão nítido... É como se a casa ainda estivesse intacta, os mesmos objetos, as mesmas sombras, um mesmo eu de antes. As vozes que se ouvem são conhecidas, como também a música, tantas vezes tocada no pequeno aparelho toca-CD.

Tudo está lá, do mesmo jeito: manhãs conhecidas invadiam as janelas, um cheiro de café tomava o ambiente, o novo dia era recebido com uma vontade explícita de felicidade. Os livros, sempre espalhados pelos cantos, jaziam ao chão. Era neles que tinha o costume de perder-se nas tardes floreadas por uma sensação boa, de estar bem, de estar completo.

Imaginava-se como antes, sentado à porta da casa saudosa, as folhas das castanholas sendo levadas pela brisa morna de um passado que não volta mais. Tudo era saudade; grandes e fúteis debates sobre a vida e seus paradigmas; o silêncio compartilhado entre os companheiros de vinho, café e violão; longas e repetitivas sessões de treinamento, ainda que sem objetivo algum, mas de algum modo o Taekwondo os mantinha unidos, como uma família; e o que dizer da canção tantas vezes ensaiada para a primeira gravação?...

A casa tinha também sua tristeza, seu instante de nada, marcado pelo exato momento de uma saudade a mais, nas noites lavadas por chuvas de inverno. Foi numa noite assim, solitária, fria, que se curtiu o mais triste adeus; não o adeus de uma longa viagem que um dia acaba, mas o fim da história do amor que um dia dele quis ser, como tantos outros, levados por um quê de incerteza, lembrados e evocados pelos tempos imemoráveis...

Ali também foi palco de não poucas epifanias. Talvez se se apurar os sentidos ainda é possível sentir o cheiro do perfume da mulher que encheu a casa e sua vida também. Talvez seja ainda possível perceber o rastro de luz deixado por sua presença, ou quem sabe a um canto acompanhar cada movimento seu, cada gesto, cada palavra dita. Acontece que esta presença se impregnou não só na lembrança da velha casa, mas em si próprio, em sua carne e saudade. Parecia impossível a redenção das lembranças, mortas e ressurretas, como os fantasmas de seu passado antigo...

O pequeno quarto era o seu laboratório de idéias, literárias ou não, que enchiam folhas e folhas de papel, se acumulando pelos espaços vazios da casa. Cada noite era assim: o homem só e o papel branco, um defronte o outro, dois gladiadores exaustos com armas em punho, prontos para a mais sangrenta das batalhas, a luta pela conquista das lembranças...

Como se sentia fraco com todo esse instante de perdição... Tudo se perdera, não há mais casa, nem tarde alguma onde sentir o hálito da brisa tocando seu rosto. Cada rosto familiar foi se perdendo, as coisas são assim mesmo, se perdem por aí, menos a saudade que o coração insiste em manter viva... As manhãs nunca serão como aquelas que acolhiam a casa e os que nela viviam: o cheiro adocicado do café tomando o ar, a poesia que começava a se insurgir em mais uma tarde serena, as leituras dos livros, seus companheiros de solidão e angústia, a plena certeza de que aquele seria um dia para grandes coisas...

Diante de tanta lembrança boa, um suspiro o faz pensar que as coisas são assim mesmo: o passado está aí para consumir tudo que faz relembrar o tempo que não volta mais, povoado por boas e ternas vivências.
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