Lixo? gente



Eles estão por toda parte. Nas esquinas, em baixo de viadutos, sob as marquises, nenhum lugar é impossível encontrá-los. Da noite para o dia se proliferam como ratos, o resultado de seus livres e descompromissados amores se vê todo dia nos sinais das ruas. E é em cada semáforo, que, com habilidades circenses, eles conquistam olhares curiosos, têm seu momento de fama, de notoriedade. Sua pequena apresentação às vezes é recompensada por uma mão mais caridosa que lhe estende uma moeda; junta a outras garantirá uma quase-refeição.

Porém, na maior parte do dia eles são anônimos. Ninguém sabe como se chamam, não têm casa, seu destino permanece incerto, como a próxima refeição. Perambulam por toda a cidade, vez ou outra seus olhares se cruzam com os meus e com os seus também. Neles eu posso enxergar um silencioso pedido de socorro e ajuda; também o medo da incerteza da vida que os aflige; vejo ainda um misto de desesperança e rancor; desesperança pela impossibilidade de mudar sua nefasta condição; rancor por alguém ter-lhes roubado o direito de sonhar, de ter esperança, de ser gente...

É triste ver como seus corpos esquálidos se acostumaram com o quase-nada. Com extrema habilidade, eles vasculham as latas de lixo, buscam encontrar as sobras daquilo que eu e você nos fartamos, e é com esse “resto” que eles garantem sua sobrevivência. Há muito deixaram de ter vergonha de estarem socados no meio da sujeira doméstica produzida por mim e por você. O único aroma que seus olfatos estão acostumados é o de comida putrefata; de alguma forma, em meio aos vermes que lhes corroem as entranhas, seus organismos conseguiram se adaptar às agressões causadas pela deglutição de alimentos azedos e podres.

Quando chega a noite, se amontoam nas calçadas em busca do melhor lugar para dormir. Um papelão velho e sujo serve-lhe de colchão, um trapo imundo, de cobertor. Adormecerão como meninos, mirando o imenso tapete estrelado, vastidão de pontos luminosos, que traz aos seus corações endurecidos pela privação um segundo de embevecimento. Naquele instante mágico, diferente da opacidade habitual, seus olhos brilham com o espetáculo da noite vasta, que sorri para aqueles rostos quase encobertos pelo lençol sujo e fedorento. Nesse momento eles se permitem pensar: pensar sua situação, seus medos, suas expectativa no novo dia que logo nascerá. Ousam questionar para a vida o porquê de estarem assim, esquecidos, abandonados, tratados como sub-gente; chegam a causar asco a pessoas esnobes como eu e você que se enoja do odor que exala de seus corpos imundos, sem banho. Eles têm um segundo de lucidez em meio ao torpor trazido pela droga barata, furtada. Mas, confusos, logo desistirão de entender as inquietações de sua alma. Preferirão continuar assim como estão, sargeja da sociedade, sendo diariamente vomitados pela minha e sua ânsia de mais acúmulo, mais prazer, mais conforto, mais, mais, mais...
Agora, te desafio a olhá-los nos olhos todas as vezes que encontrá-los por aí. Se você tiver coragem, permita-se fitá-los por alguns instantes, e verás: como se parecem com você, não é? Pobres criaturas relegadas à própria sorte, produto de nossas ambições funestas, nos acostumamos a vê-los nas ruas, vagando sem destino. Quantas vezes eles bateram no vidro de nossos carros pedindo uma moeda, e o que fazemos? Ignoramos suas presenças, olhamos para o lado oposto, fingimos que não é conosco, damos a desculpa de que pode ser ladrão, assim é mais fácil... a eles resta apenas vergar a cabeça num sinal de aquiescência, há muito desistiram de se impor, se esqueceram de como é ser gente...
Acontece que ignorá-los não os fará desaparecer; nem tampouco adiantará fingir que não existem. Eles estão por aí sim!, sem nome, sem identidade, sem esperança, sem a minha e a sua atenção. E enquanto não resolvermos dar as mãos e tornarmo-nos uma sociedade de iguais, eles continuarão dormindo nas calçadas por onde pisamos, tendo somente nas noites amigas o motivo para sorrirem e se sentirem um pouco menos lixo humano.

Em 26 de setembro de 2008
23:11p.m.
1 Response
  1. Unknown Says:

    é verdade,concordo com vc,mas é preciso nascer dentro de nós um menino como esse q vive dentro do lixo,sobre os viadultos,entre as esquinas das nossas cidades.Pq muitas vezes esses lixos estão dentro de nós mesmo,quando rejeitamos alguem,quando olhamos pra nós mesmos e vemos só o orgulho,o egocentrismo,a falta de dialogo com nós mesmo...é preciso acordarmos dentro de nós pra q essas pessoas possam sumir das calçadas,dos semáforos,dos viadultos,das esquinas de nossas cidades...VALEUUUUUUUUUU!!


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