Coisa de guri



Bem verdade que as tardes sob a sombra das mangueiras trazem uma saudade danada. Como era bom quando brincávamos de jogar gude, pião, de fazer casinhas de areia molhada, de jogar o “pau na lata”. Era boa a vida naquele tempo, os dias corriam tranquilos, como demorava a chegada do Natal e dos primeiros dias frios do ano!... Era bom acordar de manhã e, ainda sob o cobertor, ver a manhã ficando mais clara pela grande janela. Daquele jeito eu podia sentir o dia nublado entrar na casa sonolenta. Logo me levantaria e me postaria à minha janela, vendo o riso preguiçoso da manhã me invadir...

É impossível não rir me lembrando dos banhos dos banhos no Cano, proibidos pelo Pai. Ele sempre dava um jeito de passar por lá e ver se seus filhos estavam se esbaldando nas águas barrentas. Quando o avistávamos, eu e o Beto, meu irmão, tratávamos de prender ao máximo a respiração e mergulhávamos para não sermos descobertos.
Quando o Pai constatava – pessoalmente! - que não estávamos no Cano, então ia-se e depois de uma boas risadas, eu e o Beto nos deleitávamos na tarde molhada que ia-se desfiando...

Bons tempos aqueles... Na escola era divertido ficar olhando os alunos passarem pra todos os lados, o burburinho falando de tudo: desde bobagens até os primeiros amores que nasciam e o mundo sob a ótica infantil que até então tínhamos; os companheiros de sala e adolescência, seus apelidos inesquecíveis, nossas inúmeras aventuras todas as tardes, quando saíamos pela cidade em nossas bikes poderosas desbravando o mundo que era nossa Floriano. E eu ainda fazia minhas incursões secretas e noitívagas : me postava no canto mais escuro da rua, em frente à casa da garota que roubara meu tempo e coração. Tudo valia para vê-la fora do ambiente da escola: dava um jeito de emprestar alguma coisa a ela para depois ter motivo de ir até sua casa. Quando não havia motivos assim, ficava clandestinamente à espreita de uma rápida aparição sua pela janela.
Eu faria isso por muitas noites, até que um dia eu parti. Então meu coração foi partido porque deixava para trás a menina linda, de olhos castanhos e cabelos ruivos que amei sem que ela soubesse desse amor.

Muitos anos depois rememoro tudo isso, os olhos marejados, o coração apertado pelo fim que levou aquele guri, que com tantas privações procurou um jeito de ser feliz. É claro que tudo isso lhe custou um caro preço: anos depois ele viria a se tornar um colecionador de muitas perdas e poucos ganhos. Seu rosto perderia as feições pueris, daria lugar ao rosto marcado pelo cansaço e desilusão. O espelho amarelo do banheiro atestava isso: os olhos perderam o brilho, a vivacidade; agora só um olhar cinzento, de lamento, envolto de escuras olheiras e rugas teimosas. Esses olhos se acostumaram a uma busca irrefreável pelo menino que se foi, por suas traquinagens e facécias. Tentam inutilmente reviver o tempo antigo do passado, trazendo tudo também, a escola, os amigos, o Cano, o amor. É claro que somente a lembrança é suplantanda desse baú repleto de coisas improváveis. E por isso seu coração chora a dor do que um dia foi e não é mais...
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