Piano e magia




Poucas coisas marcam a vida de uma forma especial. O primeiro passo. O primeiro dia na escola. O primeiro amor. A primeira lágrima de dor. O primeiro instante de vazio...
Mas nem sempre as primeiras coisas são as que marcam, mas alguns momentos que nos marcam assim, primeiro. Como aquela noite. Como aquele instante. Como o piano que encheu de esperança a sala ampla.
Ele estava a um canto, solitário, emudecido praticamente a semana toda. Mas que gozado, um piano de cauda de verdade, o “meu” piano esquecido. Isso até que minhas mãos pouco hábeis começassem a martelar-lhe as teclas brancas e pretas e o tirasse de sua letargia musical. O que se repetia quase todas as manhãs: o quase-escritor, pianista? Pianista barato. Tão barato quanto os vinhos que financiam a minha embriaguês.
Mas naquela noite não. Não haveria um concerto com platéia, apenas o pianista barato, seu repertório encolhido, sua pouca habilidade musical. E ela. Aquela noite iria tocar a canção mais especial, espécie de prece musical do amor que então vivia. E tudo estava preparado: a sala ampla, só não completamente vazia pela presença do gigante negro adormecido a um canto; o grande espelho onde eu podia ver o reflexo do beijo mais que esperado; as barras de alongamento, usadas na flexibilidade de futuras bailarinas.
À sombra da luz vacilante os dedos martelavam as teclas, buscando construir a melodia ensaiada à exaustão. Sentada ao meu lado, pude ouvir-lhe um suspiro de surpresa por tão excêntrico presente. Seu sorriso abriu-se lentamente, comovido pelas notas suaves que iam enchendo a sala, seu coração e minhas esperanças. Seria uma intenção de lágrima que estaria prestes a brotar de seus olhos? E de repente tudo ficou mágico, como se tudo ao redor se tornasse parte daquela canção que minhas mãos extraíam do teclado alvinegro. Simplesmente perfeito. O perfume que se volatizava de seu corpo dava aroma a cada acorde entoado. O brilho dos seus olhos, expressando talvez uma possibilidade; e era como se o cenário fosse tomado por aquela canção, por aquela circunstância, por aquele instante de vaguidão que enchia meu peito. O cenário perfeito. Um beijo talvez?...
Não precisei chegar ao fim da música. Minhas mãos foram impedidas de continuar a tocar pelas dela. Eu sabia ter chegado o momento. Então. Enfim...
A magia daquele instante que nunca iria se repetir foi dissipada pela entrada inesperada de um curioso com a música que lhe chamara a atenção. O resultado: um casal desconcertado diante da interrupção repentina do intruso. Tudo o que pude fazer foi ciscar uma nota ali, um acorde aqui, balbuciar alguns grunhidos, dando a entender ao nosso "amigo" inesperado que ele não era bem vindo.

A noite terminou sem que a epifania esperada acontecesse. E eu nunca mais toquei naquele piano.
1 Response
  1. Jan Góes Says:

    As coisas que marcam estão sempre em um profundo lgar...em nós ou nos outros...muito bom o desenrolar da prosa Rullor


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