Lares que se foram





A noite lá fora está calma e serena. Somente dentro de mim jaz um turbilhão de emoções que me conduzem de regresso ao que fui antes. Algo me atrai à velha casa, a dos meus idílios. Uma súbita saudade desponta, subindo pela garganta e inundando minha solidão. As paredes nuas, sem adereços; o cheiro da nova manhã escorrendo pela janela; o café com waffer sorvido todas as noites na roda de amigos; as canções que construiram nossa identidade; as noites chuvosas sob a luz da vela luciluzente, onde, ao redor, eram contadas histórias de outros tempos; os amores que vieram e partiram como uma estação...
Tudo se foi, aquele tempo ruiu, desprendeu-se da realidade que teimo em reviver. E essa teimosia se deve ao legado que aquela casa deixou entranhado em mim. Legado de dor, saudade e consternação.
Outros lares também foram o meu passado. Mas eu não sentia saudade. Apenas receio de ser esquecido. Por isso ficava à janela, espreitando o dia se findando e a noite começando a nascer...
E então me punha a contemplar a noite, vasta e pontilhada de luz. E na minha imaginação-de-menino especulava qual seria o tamanho do céu na sua imensidão preta e infinita. E naquele instante podia ouvir os conselhos preocupados e supersticiosos da mãe admoestando o guri para que não chamasse o céu de preto, mas "escuro"...
Assim o guri se tornou um sonhador. Dentro de si nascia um mundo novo, uma nova perspectiva, uma forma diferente de viver a realidade. Dali nasceria a obsessão pela palavra ideal, que pudesse descrever este mundo. Mas ele precisaria de uma ponte, um caminho que o levasse a este lugar mágico onde se completaria. O menino sonhador...
De alguma forma os sonhos foram destruídos, esmigalhados e então todos partiram. Aconteceu o que sempre temera: esqueceram-se de buscá-lo. E se viu só.
Nunca mais construiu suas casinhas de areia molhada. A pipa que coloria suas tardes ficou esquecida num canto, talvez rasgada. A janela por onde via a vida e as pessoas passarem se tornou motivo de consternação: noites vazias e geladas seriam contempladas por muitas outras janelas da vida. E então veio a casa.
Talvez uma centelha daquele mundo tenha sobrado. Era possível sentir o cheiro latente da manhã renovada. Logo enchida por sons conhecidos e amigos, mas afinal...

A casa acabou se perdendo também. Como o guri. Como tudo. Como eu.
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