Música e amor I



Sintonizando diferentes estações, o rádio do carro traz de volta a mim uma canção que há muito não ouvia. E logo aquela canção conhecida enche de enlevo os meus ouvidos, bela canção de meus dias meninos, e de profunda nostalgia o coração, por um tempo que não volta mais. Fiz menção de mudar de estação de rádio, mas desisti: não adiantaria tentar fugir daquela lembrança evocada...
A música tem o poder de transfigurar a realidade de agora numa lembrança nevoada, embaçada, e isso me causa dor e consternação. Por isso me permito o regresso a dias outros, bem distantes, bem antigos, lá para trás, quando uma bela garota foi capaz de despertar naquele jovem que um dia fui, o amor.
Ivone, para mim era a garota mais linda do mundo (ainda que minha visão de mundo fosse bem limitada!). Com seus cabelos ruivos e soltos, seus olhos grandes cor de amêndoa e seu cheiro de menina-mulher, ela foi o alvo de minhas pretenções amorosas. Sentava-se bem ao meu lado na sala de aula do também saudoso Colégio Estefânia Conrado, berço reverberante de minha formação escolar, e onde eu ficava aulas inteiras fitando-a, a seu sorriso fácil, a sua meiguice contagiante.
As longas horas depois da escola eram suportadas pela expectativa de vê-la no dia seguinte, e eu sentia um verdadeiro êxtase ao simples mencionar de seu nome. Nas muitas noites reclusas que passei, me sentava no escuro noturno, o rádinho de pilhas, ouvindo aquela canção que marcou aquele momento e aquele amor: AL DILÁ, um bolero italiano que falava do amor que é maior que o mar, as estrelas e tudo o mais. E era exatamente como eu amara Ivone: acima de tudo o que tinha e era naquele instante único. Sim, desde o primeiro instante já amava a Ivone.
Tanto que as horas de aula não mais eram suficientes para suprir minha necessidade de tê-la perto de mim. Então sempre arrumava subterfúgios para encontrá-la depois da escola: dava um jeito de emprestar-lhe algo ou pedir emprestado; assim, eu poderia devolver-lhe pessoalmente, indo até sua casa e assim matar minha sede de um instante a mais junto a minha amada.
Logo essas estratégias não bastariam também. E aí começou meu verdadeiro suplício: falar-lhe de meu sentimento, de meu amor...
Pus em prática meus tenros dotes quase-poéticos. Vários foram os bilhetes de amor que escrevi, cerrado no banheiro do colégio. Eles falavam do meu sentimento, da possibilidade de ficarmos juntos, enfim, era um pedido de namoro. Jamais qualquer deles chegou às suas mãos.
O tempo passou, o fim do ano letivo se encerrava, aumentando o meu desespero de não mais vê-la e estar próximo dela. Um grande dilema se apoderara de mim: vencer o medo de ser rejeitado e dizer que a amava ou calar-me para sempre.

* * *

Um dia tive que partir. Ela também partiu, para o coração do Planato Central, soube depois. Eu me entranhei na Bahia, até hoje. E o meu silêncio, a escolha, foi quebrado por esta canção que marcou aquele amor improvável do passado, que trouxe neste agora, além de saudade e consternação, o arrependimento de não ter ao menos tentado.
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